Direito real de propriedade, posse e a função social
- Carlos Alberto Cordeiro dos Santos
- 9 de out. de 2020
- 8 min de leitura
Atualizado: 28 de jun. de 2021
O direito real de propriedade previsto no Código Civil não possui um conceito definido, estabelece o artigo 1228, caput, o enunciado dos poderes que são inerentes ao proprietário como o de usar, gozar e dispor da coisa, bem como o direito de reavê-la do poder de quem quer que, injustamente, a possua ou detenha.
Segundo Gonçalves (2007, p. 111):
"[...] o primeiro elemento constitutivo da propriedade é o direito de usar (jus utendi), que consiste na faculdade de o dono servir-se da coisa e de utilizá-la da maneira que entender mais conveniente, podendo excluir terceiros de igual uso. O segundo é o direito de gozar ou usufruir (jus fruendi), que compreende o poder de perceber os frutos naturais e civis da coisa e de aproveitar economicamente os seus produtos. O terceiro é o direito de dispor da cois8a (jus abutendi), de transferi-la, de aliená-la a outrem a qualquer título. Não significa, porém, prerrogativa de abusar da coisa, destruindo-a gratuitamente, pois a própria Constituição Federal prescreve que o uso da propriedade deve ser condicionado ao bem-estar social. O último (quarto) elemento é o direito de reaver a coisa (rei vindicatio), de reivindicá-la das mãos de quem injustamente a possua ou detenha. Envolve a proteção específica da propriedade, que se perfaz pela ação reivindicatória."
O direito real de propriedade é oponível erga omnes, ou seja, contra todos, que devem conter-se de molestar o titular.
Consoante artigo 1.227 do Código Civil, salvo as exceções contidas no mesmo código, os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro do título no Cartório de Registro de Imóveis.
Se se tratar, porém, de direito real de propriedade sobre coisa móvel aquisição do direito se dará com a tradição (artigo 1.226).
O artigo 1.225 do Código Civil elenca, de forma taxativa, os direitos reais, quais sejam: propriedade, superfície, servidões, usufruto, uso, habitação, direito do promitente comprador do imóvel, penhor, hipoteca, anticrese, concessão de uso especial para fins de moradia e a concessão de direito real de uso e a laje.
Sendo à propriedade o direito real mais completo, por conferir ao seu titular a conjunção dos poderes de usar, gozar, dispor e reaver a coisa de quem injustamente a possua ou detenha.
Para Gonçalves (2007, p. 109):
"Os demais direitos são resultantes do seu desmembramento e possuem denominação de direitos reais menores ou direitos reais sobre coisas alheias."
Para Rodrigues (2003, p. 86), a propriedade é “plena, quando seus direitos elementares se acham reunidos no do proprietário, e limitada, quando tem ônus real ou é resolúvel.”
Acontece que apesar do direito real de propriedade reunir todos os poderes constantes no artigo 1.228, caput, do Código Civil, este direito sofre limitações no exercício do seu uso, sejam elas de ordem pública ou de caráter privado, evidenciando a defesa do interesse público e o bem-estar da sociedade.
Desta forma não se pode dizer que esses poderes são absolutos uma vez que estão sujeitos a restrições em relação aos direitos alheios que deverão ser respeitados.
Na definição de Rodrigues (2003, p. 87):
Entende-se que o direito de propriedade é absoluto no sentido de que o proprietário tem sobre aquilo que é seu o mais amplo poder jurídico, usando e desfrutando a coisa da maneira que lhe aprouver.
Tais limitações foram sistematizadas por Diniz (2006, p. 261-297) que as classificou em:
1) Restrições à propriedade em virtude de interesse social: A) Restrições constitucionais, tais como: desapropriações por necessidade ou utilidade públicas e interesse social (Artigo 5o, XXIV, da CF); jazidas, minas e demais recursos minerais (artigo 176 da CF); desapropriação de imóvel rural para fins de reforma agrária (artigo 184 da CF). B) Restrições administrativas, tais como: proteção ao patrimônio histórico, artístico e nacional; leis edilícias que limitam o direito à construção; leis de zoneamento etc.. C) Limitação ao direito de propriedade rural, conforme Lei n. 4.504/64. D) Limitações de natureza militar, como por exemplo: requisição de bens móveis e imóveis necessários as forças armadas e à defesa da população (Decreto-lei n. 5.451/43). E) Restrições em razão da lei eleitoral, tais como: requisição de prédios para locais de votação etc.. 2) Limitações baseadas no interesse privado, tais como: direitos de vizinhança; restrições quanto ao uso da propriedade (artigo 186 a 188 do Código Civil); limitações similares às servidões; passagem forçada; passagem de cabos e tubulações (artigo 1.286 do Código Civil); águas; limites entre prédios; direito de tapagem (artigo 1.297 do Código Civil) e direito de construir.
Figura ainda como restrição ao direito de propriedade a desapropriação judicial, inovação do Código Civil de 2002, constante no artigo 1.228, §§ 4o e 5o, em que o proprietário é privado da coisa, mediante justa indenização, por um considerável número de pessoas que realizaram no imóvel obras e serviços consideradas pelo juiz de interesse social e econômico relevante, mediante o exercício da posse-trabalho em consonância com a função social da posse.
Diniz (2006, p. 203), por sua vez, utiliza da expressão posse-trabalho, afirmando:
"[...] trata-se, como nos ensina Miguel Reale, de uma inovação substancial do Código Civil, fundada na função social da propriedade que dá proteção especial à posse-trabalho, isto é, à posse traduzida em trabalho criador, quer se concretize na construção de uma morada, quer se manifeste em investimentos de caráter produtivo ou cultural. Essa posse qualificada é enriquecida pelo valor laborativo, pela realização de obras ou serviços produtivos e pela construção de uma residência."
E importante ressaltar que as limitações impostas ao exercício do direito de propriedade apesar de garantido no rol dos direitos humanos fundamentais, têm por fim atender a função social prevista no artigo 5o, inciso XXIII da Constituição da República, sob pena de o proprietário vir a ser onerado em relação ao seu direito de propriedade.
O direito de propriedade garantido pela Constituição da República atende a finalidade social (artigo 5o, inciso XXII e XXIII da Constituição Federal) quando serve de moradia (artigo 6o da Constituição Federal).
Quando está de acordo com a ordem econômica, que tem por finalidade assegurar a todos a assistência digna, conforme os ditames da justiça social, observado, também, o princípio da função social da propriedade (artigo 170, caput e inciso III da Constituição Federal).
Quando está em consonância com a política urbana, política agrícola e fundiária e a reforma agrária (artigo 182, § 3o, 183, 186 e 191 da Constituição Federal) e com o direito ambiental constitucional (artigo 225 da Constituição Federal), bem como com as disposições sobre a propriedade privada (artigo 1.228 e seguintes do Código Civil).
Cabe destacar que não só o direito real de propriedade, como também o instituto da posse devem ser orientados no sentido de cumprir o princípio da chamada função social, que tem por escopo à proteção a dignidade da pessoa humana e atender os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil previstos no artigo 3o da Carta Magna.
Para compreender o instituto da posse vamos entender as teorias que o envolvem. São divididas em 02 (dois) grupos, primeiro a Teoria Subjetiva, tendo como defensor Savigny.
Para esta corrente a posse caracteriza-se pela união de 02 (dois) elementos: o corpus, elemento objetivo, material, que consiste no poder físico da pessoa sobre a coisa e o animus, elemento subjetivo que consiste na intenção de ter a coisa para si (animus rem sibi habendi).
Os conceitos de corpus e o de animus sofreram mudanças ao longo do tempo, onde o corpus que era compreendido como o poder de exercer contato direto sobre a coisa passou a consistir em uma mera possibilidade de exercer este contato, na condição de que tenha a coisa a sua disposição, não perdendo, a título de exemplo, o proprietário seu veículo ao deixá-lo em um estacionamento quando vai ao mercado.
Para esta teoria as pessoas que figuram como locatárias, depositárias, entre outras, não poderiam invocar os interditos possessórios já que pelo elemento animus não possuíam a intenção de serem donas do bem.
A segunda Teoria é a Objetiva, defendida por Ihering, para esta corrente existe apenas a figura do corpus, estando o animus nela compreendida, bastando apenas o contato da pessoa sobre a coisa ou a possibilidade de exercer este contato.
É ter conduta de dono. A posse é a exteriorização da propriedade, a utilização econômica da coisa, a forma como o domínio se manifesta, por isso deve ser protegida. Esta corrente admite que os locatários e depositários de um bem utilizem- se das ações possessórias para protegerem seus direitos, porque são considerados possuidores.
O Código Civil brasileiro adotou a Teoria Objetiva de Ihering e conceitua possuidor, mesmo que de forma indireta, em seu artigo 1.196, como sendo aquele que exerce de forma plena ou parcial algum dos poderes inerentes à propriedade, ou seja, o de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
Acontece que esta teoria existe em caráter preponderante, mas não exclusivo, sendo, desta forma, adotada a Teoria Subjetiva de Savigny, por exemplo, quando se trata de usucapião extraordinária, prevista no artigo 1.238 do mesmo diploma legal.
Existem situações em que a pessoa não é considerada possuidora, mas sim detentora da coisa, nestes casos cabe ao legislador dizer, desqualificando a relação para mera detenção, como reza o artigo 1.198, parágrafo único do Código Civil:
"Considera-se detentor aquele que, achando em relação de dependência para com outro, conserva-se a posse em nome deste e em cumprimento de ordens e instruções suas.
Parágrafo único. Aquele que começou a comportar de modo como prescreve este artigo, em relação ao bem e à outra pessoa, presume-se detentor, até que prove o contrário."
Não constitui, ainda, posse atos de mera permissão e tolerância, como também não autorizam sua aquisição os atos violentos e clandestinos, senão depois de cessada a violência e a clandestinidade.
Diante do exposto verifica-se que o direito real de propriedade e a posse são institutos diferentes, sendo permitida que determinada pessoa tenha a posse da coisa sem necessariamente ser proprietária, uma vez que para ser proprietário é preciso ter o domínio do bem e o possuidor tem é o bem a sua disposição, utilizando-se dele e colhendo seus frutos.
Fica comprovada a função social da posse não só pelo fato de se tratar de exteriorização do direito de propriedade, como também encontramos sua presença na valoração da posse-trabalho prevista no artigo 1.228, §§ 4o e 5o do Código Civil, como também nos parágrafos únicos dos artigos 1.238 e 1.242 do mesmo diploma legal, que prevêem a redução dos prazos para a usucapião extraordinária e ordinária, respectivamente, nos casos envolvendo bens imóveis.
Na usucapião extraordinária o prazo é diminuído de 15 (quinze) para 10 (dez) anos, na usucapião ordinária a diminuição é de 10 (dez) para 5 (cinco) anos; nestes casos a redução se dá diante da mesma situação da posse-trabalho, nos casos em que aquele que tem a posse utiliza o imóvel com intuito de moradia ou realiza obras e investimentos de caráter produtivo, com relevante caráter social e econômico.
Estas reduções estão de acordo com a solidariedade social, com a finalidade de erradicar a pobreza e também com o amparo ao direito à moradia prevista no artigo 6o da Constituição da República.
Enfim, tanto o instituto da propriedade quanto o da posse, apesar das diferenças que se encontram presentes, são regulados por normas infraconstitucionais, guiadas pela força normativa da Constituição da República, e têm por objetivo satisfazer interesses sociais e coletivos no intuito de atender o princípio da função social esboçado na Carta Magna.
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